24 de maio de 2019

Tempo de Leitura: 6 minutos

Como você reagiria se alguém se aproximasse e lhe dissesse o seguinte: “Sou um deus alienígena de bilhões de anos, vim de um planeta da galáxia de Andrômeda e descobri um produto que cura várias doenças e condições, dentre elas a malária, o câncer, o HIV e o autismo”? Eu imagino que você não daria atenção e até duvidaria da sanidade mental do indivíduo, mas, acredite, milhares de pessoas no mundo caíram nessa historinha.

Estou falando de Jim Humble, um garimpeiro americano, que alega ter descoberto as propriedades medicinais do chamado “MMS” ao curar seus amigos que contraíram malária na selva amazônica. Jim até fundou sua própria igreja: “Genesis II, a igreja da saúde e da cura”.

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Mas, afinal, o que é esse MMS? A sigla vem de Mineral Miracle Solution, ou “Solução Mineral Milagrosa”, recentemente rebatizado: “Solução Mineral Mestre” ou uma nova sigla, CDS (Chlorine Dioxide Solution). Apesar dos nomes bonitos, a substância não passa de dióxido de cloro, um alvejante potente que é criado ao se misturar clorito de sódio a ácido clorídrico. Na indústria, ele é usado para branquear a polpa da madeira destinada a fazer o papel, e há até um protocolo específico para lidar com ele devido à sua toxicidade.

O uso do MMS como “cura” ou tratamento para autismo ficou mais conhecido após o livro da também americana Kerri Rivera, “Curando os sintomas conhecidos como autismo” ao detalhar um protocolo para se alcançar a cura do autismo, que inclui dieta, desintoxicação e o uso do MMS por via oral e através de enemas — a introdução do produto diluído diretamente no intestino da criança, por via anal. O resultado dos enemas sucessivos é a descamação das paredes do intestino e muito muco, que, quando expelido, é apontado pela autora como “vermes causadores dos sintomas de autismo”.

Por ser altamente bactericida, o dióxido de cloro também é usado no tratamento da água por empresas de saneamento básico em diluições da ordem de partes por milhão (ppm). Segundo um informativo de 2003 da Sociedade Brasileira de Química, o MMS não pode ser comercializado comprimido, por seu alto poder de explosão, e por isso tem que ser manipulado  no local de aplicação em estações de tratamento de água. Também há vários artigos publicados — alguns inclusive constam num relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) de 2002 — mostrando as reações adversas de quando se inala a substância na forma de gás.

Não existem estudos científicos comprovados sobre usos em humanos, em maiores concentrações do que as mencionadas acima, como a indicação feita pelos adeptos do MMS, devido à toxicidade registrada do produto. Há entretanto, um estudo em camundongos registrando que a administração de baixas doses de dióxido de cloro em filhotes produziu atrasos no neurodesenvolvimento e redução na formação de sinapses cerebrais. Este mesmo artigo cita os possíveis problemas que o produto pode causar na tireoide, estômago, intestino, e até na diminuição do número de hemácias.

Anvisa reforça proibição de MMS em seu site — Revista Autismo
Anvisa reforça proibição de MMS em seu site.

Proibição

A comercialização e promoção do MMS já foi proibida aqui e em diversos países devido à extensa literatura sobre seus efeitos tóxicos que podem levar a náuseas, vômitos, desidratação e alterações na pressão arterial. Mas o que, então, leva pais e mães a optarem por algo tão absurdo e fora do senso comum?

Em primeiro lugar, precisamos levar em consideração a situação de vulnerabilidade de muitas famílias quando recebem o diagnóstico de autismo. Não há terapias na qualidade e intensidade necessárias disponíveis no sistema público de saúde. O “porto seguro” que esses pais encontram está nas redes sociais, trocando experiências com outras famílias. E é nesse meio que os charlatães se infiltram para propagandear e vender suas “curas milagrosas”. Diante do desespero e da falta de informação, muitos pais acabam sucumbindo.

Em segundo lugar, há médicos e formadores de opinião divulgando “as maravilhas do MMS” em vídeos nas redes sociais sem o menor pudor, e também sem a menor reação dos conselhos de medicina.

Em terceiro lugar, carecemos de educação científica de qualidade. Quando falamos em “evidências científicas”, relatos de cura e experiências pessoais, que há aos montes no Youtube, elas se encontram no nível mais raso e menos confiável de comprovação. E há um porquê. Vamos usar o autismo como exemplo. Crianças autistas raramente fazem apenas uma intervenção, seja terapêutica ou medicamentosa. Assim sendo, como saber se a melhora daquela criança que tomava “X” aconteceu  especificamente por causado uso de “X”? E a fono? E a terapia ocupacional?

O chamado “efeito placebo” existe, comprovadamente. Crianças autistas podem melhorar até sem intervenções, por questões de potencial neurológico genético que ainda não entendemos bem. Se justamente naquele momento da “evolução” calhou de a mãe estar ministrando a droga “X” na criança, pronto! Temos aí um lindo vídeo de “antes e depois” no Youtube.

O lançamento de um medicamento demora anos e exige milhões de dólares justamente por isso. São muitas pesquisas para comprovar que os resultados obtidos são reais e para conhecer os potenciais efeitos colaterais.

Mas, para desqualificar as evidências científicas sérias, os propagadores do MMS têm usado o argumento da “grande conspiração global da indústria farmacêutica”. Jamais serei eu a pessoa a dizer que a indústria farmacêutica é boazinha. Vejo claramente que ela pensa no lucro. Entretanto, eu me questiono sobre as razões de essa indústria não se aproveitar de uma matéria prima barata e que, teoricamente, curaria tudo. Esse poderia ser o novo medicamento multiuso e venderia toneladas como a aspirina, por exemplo. Se não fizeram isso até hoje, parece haver um motivo: a falta de evidências científicas de que o MMS beneficia o ser humano.

Outro argumento a ser desconstruído é o de que somente a indústria farmacêutica ganha dinheiro com medicamentos. Charlatães de internet vivem disso. Um dos anúncios de “kit de MMS”, que foi deletado do Mercado Livre, custava R$165 e já tinha vendido mil unidades. Basta fazer as contas. Há mães dizendo que “curaram o autismo dos filhos com MMS” enquanto vendem consultoria de como aplicar o protocolo. É um mercado enorme, e há muita gente com medo de perder seu ganha-pão.

Vítimas

Mas, com tantos danos potenciais causados, onde estão essas crianças? Por que não vemos testemunhos de quem usou e não deu certo? Para começar, é improvável que alguém, cujo filho passou mal pelo uso do MMS, vá contar isso ao médico no Pronto Socorro. As pessoas sabem que seu uso é proibido, que podem ser processadas e até perder a guarda dos filhos. Tenho recebido dezenas de relatos de casos por email, mas ninguém quer aparecer. Medo da Justiça, medo do julgamento por ter colocado o filho em risco, medo de denunciar o profissional que receitou e sofrer represálias. Medo.

Em entrevista à Revista Crescer, uma mãe contou que usou o MMS no filho adolescente por recomendação da psiquiatra. O rapaz convulsionou e teve parada cardiorrespiratória. Nessa hora, os vendedores de milagres se eximem de qualquer responsabilidade. Ou afirmam que isso é o “efeito detox”, ou jogam a culpa na mãe. “Foi você que usou errado”. A própria Kerri Rivera deixa bem avisado, em seu site pessoal, que não se responsabiliza por absolutamente nada, e que os pais são responsáveis por tudo o que vier a acontecer aos filhos.

A primeira vez em que ouvi falar de MMS foi em 2014. No final de março último, após gravar um vídeo no qual abordei o assunto, menos de uma semana depois, meu amigo Lucelmo Lacerda, por coincidência, encontrou o livro de Kerri Rivera à venda na Livraria Cultura. Foi aí que a campanha de alerta se intensificou e cresceu muito com o apoio de outros pais e ativistas. Com a ajuda da deputada federal Sâmia Bomfim, que enviou um ofício à Anvisa, o Mercado Livre foi notificado e retirou a maioria dos produtos que estavam à venda na sua plataforma.

No entanto, os vendedores têm abusando da criatividade para comercializar o produto com outros nomes e driblar a fiscalização. A maioria das livrarias que contatamos se comprometeu a tirar o livro de circulação. Mas a briga ainda não acabou: há páginas e grupos no Facebook vendendo e promovendo este produto, além de vídeos no Youtube.

De qualquer forma, nenhuma campanha consegue superar a falta de educação científica. Podemos até conseguir banir o MMS, mas mês que vem já vai aparecer o próximo “composto milagroso”, catapultado por vídeos e testemunhos de cura.

É preciso conscientizar no dia a dia. É preciso trazer o bom senso à tona. Este mercado nocivo tem enriquecido pessoas às custas da saúde de crianças e adolescentes e do medo de mães que não denunciam.

 

 


CONTEÚDO EXTRA

 

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